segunda-feira, dezembro 29, 2003
051 Leituras lá fora
Desculpem-me a tradução domingueira, mas não quis deixar de partilhar convosco esta perspectiva tão longínqua da nossa realidade nacional.
Uma sala de aulas anónima algures numa escola da capital. É o dia de atendimento aos encarregados de educação, e uma senhora de uns quarenta anos discute com um professor sobre o absentismo e os resultados desastrosos do seu rebento. Quando é informada que este último falta regularmente às aulas, responde: "É o vosso papel ensinar o meu filho a respeitar a disciplina!". Mais tarde, confiará a um outro professor que é devido ao corpo docente ser demasiado jovem que o seu filho não se sente compelido a testemunhar-lhe qualquer respeito. Antes de explicar o mais seriamente possível que, se este bravo rapaz chega sistematicamente duas ou três horas atrasado de manhã, é porque passa demasiado tempo na casa de banho a pentear-se... A anedota presta-se à gargalhada, mas ela apenas representa na perfeição o estado de espírito de numerosos pais dos alunos de hoje em dia. Longe de apoiar o esforço pedagógico dos professores, os pais empreendem frequentemente um trabalho de sapa, minando as frágeis fundações que a escola tenta erigir. Perante tal atitude, como surpreender-se da taxa de insucesso crescente no ensino superior?
Hoje, ninguém terá a veleidade de contestar que o ensino secundário enveredou por um mau caminho. Para saber como sair dele, importa não somente elaborar a lista das incoerências que tornam o sistema actual tão ineficaz, mas também procurar as vantagens sobre as quais apoiar-se para construir um futuro que devolva enfim à escola o papel que está destinada a desempenhar: formar espíritos jovens, insuflar-lhes a alegria da aprendizagem e da descoberta, aperfeiçoar o seu sentido cívico e ajudá-los a descobrir o que será o seu futuro ofício. É a esta análise que serão consagradas as próximas crónicas "ensino" deste pequeno cantinho da teia.
Mas antes de nos interessarmos pelo sistema propriamente dito, parece-me primordial insistir no papel crucial que desempenham os pais no actual sistema educativo, porque os professores mais motivados e os sistemas pedagógicos mais elaborados nada poderão alterar se o apoio parental faltar. Quando o trabalho dos professores é criticado sistematicamente pelos pais, quando as decisões de um conselho de turma são objecto de recurso, quando por último se delega nos professores responsabilidades parentais como, por exemplo, a de ensinar às crianças a respeitar as regras do saber-viver mais elementar e a assumir as consequências do seu comportamento quando transgridem as regras em vigor no estabelecimento de ensino, é impossível ao professor assegurar a sua missão principal, que é ensinar. Em vez disso, ele vê-se no papel particularmente incómodo de pai de substituição, ou, mais exactamente, de figura de autoridade. Devido aos pais já não saberem dizer "não" à sua progenitura, é ao professor, bem contra a sua vontade, que cabe assumir esta nova responsabilidade, apenas porque, de outra forma, é impossível criar um clima propício à aprendizagem na sala de aula. Consequência lógica deste novo esforço, a quantidade de matéria abordada diminui, e torna-se impossível consagrar a cada capítulo o tempo necessário para que o conteúdo seja realmente assimilado e integrado pelos alunos. Esta superficialidade, que satisfaz os inspectores embalados pela ilusão de que "o programa foi dado", tem naturalmente consequências desastrosas: os estudantes continuam desprovidos de toda e qualquer bagagem intelectual, e não é raro - vivo-o cada ano com uma admiração renovada - encontrar alunos incapazes, no sexto ano do ensino profissional, de proceder a uma simples "regra dos três". E não me venham dizer que aquilo não lhes servirá no seu futuro trabalho! O ensino profissional pode - e deveria - formar os trabalhadores qualificados de que a nossa economia tem uma falta brutal. O termo "qualificado" fala por si mesmo: trata-se de formar trabalhadores autónomos, em pleno domínio da sua especialidade, capazes de tomar iniciativas e de se distinguir assim do simples operário.
Infelizmente, o tempo consagrado pelo pessoal pedagógico da escola simplesmente a fazer tomar consciência aos alunos da existência de regras de saber-viver que permitam conviver harmoniosamente em sociedade não permite o assegurar-se que os novos instrumentos de raciocínio ou de aprendizagem apresentados aos alunos sejam "interiorizados" realmente pelos seus espíritos. Como surpreender-se, então, que numerosos professores, desmotivados, desmoralizados, se acantonem na execução à letra das suas obrigações contratuais ou estatutárias, neste caso, assegurar-se de que os conteúdos previstos pelo programa foram dados, "vistos" pelos alunos: as aspas estão aqui para nos recordar a que ponto a expressão é literal, porque os "aprendentes" mais não fazem que "pôr" os olhos no quadro, ou mesmo no seu caderno, no melhor dos casos, para se apressarem em seguida a esquecer o que foi aprendido.
Achareis, talvez, que o quadro que vos pinto parece extremamente sombrio. É verdade que exerço o meu ofício num destes estabelecimentos de ensino "difíceis" que acolhem uma população que, se muito raramente se entrega a actos de violência, não é menos reticente a toda e qualquer forma de transmissão do saber. Tenho, contudo, a firme convicção que o problema está presente por toda a parte, mesmo se se manifesta de maneira diferente. Para que o professor possa, por fim, retomar o seu verdadeiro papel, importa que os pais tomem enfim consciência da sua responsabilidade na educação das suas crianças. Apenas sob esta condição o ensino poderá empreender a mudança. De outro modo, qualquer tentativa de reforma será dedicada impiedosamente ao malogro.
Originalmente publicado no sapo.CAP @ 12/29/2003 01:34:00 da manhã
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